''Loucura do baseado'' revisitada: maconha e psicose
Revista Brasileira de Psiquiatria, 15/06/2004
Enquanto os EUA se mantêm firmes em sua crença de
que o uso de maconha não deve ser absolutamente tolerado,
outros países na ''Velha Europa'', como a Holanda, Inglaterra,
Suíça e Portugal, bem como alguns estados da Austrália
e do Canadá, adotaram passos na política de diminuir
as penalidades para a posse de maconha. Esses movimentos estão
sendo interpretados por muitas pessoas, especialmente os jovens,
como dando luz verde ao uso da maconha. Alguns vêem essa
tendência como uma aceitação do inevitável
e os estudos nos últimos 15 anos reiteraram que a maconha
constitui-se agora como parte do horizonte de lazer para os jovens,
não possuindo mais a mística da proibição.
Tanto é assim que muitos vêem a maconha como uma
droga benigna, se é que a consideram uma droga.
Mas nenhum comentarista sensato está afirmando que a maconha
é uma substância inócua, ainda que seja difícil
de estimar se os níveis de uso irão aumentar a população
em risco ou se permanecerão os mesmos à luz das
mudanças jurídicas, existindo, no entanto, um número
de questões de saúde pública relacionadas
ao uso de maconha que exigem a atenção urgente.
A mais importante delas é a relação entre
maconha e psicose. Estão os jovens vulneráveis se
colocando em risco de terem psicose por meio do uso de maconha
e quais deverão ser os conselhos daqueles que lidam com
os jovens com problemas de saúde mental?
As bases de evidências já mostraram que a maconha
pode causar reações psicóticas breves, especialmente
em usuários virgens (Hall et al, no prelo), e pode exacerbar
os sintomas daqueles diagnosticados com esquizofrenia (Linszen
et al, 1994). No entanto, o discernimento do papel causal da maconha
em precipitar a esquizofrenia mostrou-se mais difícil.
Durante 15 anos, a única evidência confirmando um
vínculo causal proveio de um estudo sueco com 50.087 conscritos
que encontrou que os usuários que se autodenominaram usuários
''pesados'' de maconha tinham seis vezes mais probabilidade de
terem sido subseqüentemente diagnosticados como esquizofrênicos
do que os não-usuários (Andreasson et al, 1987).
Os achados desse estudo são únicos e tendem a provocar
mais perguntas que respostas. Foi somente nos dois últimos
anos que outros estudos prospectivos populacionais foram relatados
(Arseneault et al, no prelo). Eles incluem uma extensão
do estudo original do Exército Sueco (Zammitt et al, 2002),
um levantamento populacional da Holanda (Van Os et al, 2002) e
dois estudos prospectivos sobre os efeitos aumentados de risco
de psicose em adolescentes usuários de maconha da Nova
Zelândia (Arseneault et al, 2002; Fergusson et al, 2003).
Apesar de cada um desses estudos sofrer de vários problemas
metodológicos que restringem a formulação
de um quadro geral (utilizam uma variedade de desfechos de esquizofrenia,
possuem informações limitadas sobre o uso de drogas
em suas amostras e possuem limitado poder estatístico),
tomados de conjunto, eles sugerem que a maconha pode muito bem
ser uma causa componente, parte de uma complexa constelação
de fatores que levam à psicose.
O que esses estudos sugerem é que, embora no nível
individual o uso de maconha pareça levar somente a um aumento
de duas a três vezes no risco relativo de esquizofrenia,
no nível populacional a eliminação do uso
de maconha poderia ocasionar uma redução de 7 a
13% na incidência da esquizofrenia. Amostras populacionais
maiores são necessárias para avaliar um número
maior de indivíduos com transtornos psicóticos para
testar esses achados; uma modelagem recente do impacto dos índices
de uso de maconha versus a incidência de esquizofrenia na
Austrália não encontrou uma relação
causal (Degenhardt L et al, 2003). Necessita-se de estudos também
para entender os mecanismos pelos quais a maconha causa psicose.
No entanto, a mensagem de saúde pública é
clara. Alguns casos de transtornos psicóticos podem ser
evitados pelo desestímulo do uso de maconha, particularmente
entre jovens psicologicamente vulneráveis, sendo os usuários
mais jovens de maconha os em maior risco (Arseneault et al, 2002).
As mensagens de saúde devem ser fornecidas com equilíbrio
e cuidado, porque é muito fácil aumentar a credulidade
de audiências-alvo de jovens com propagandas alarmistas
e condenações vazias que não reflitam suas
próprias experiências. Mas precisa-se de ação
para evitar uma carga adicional aos já sobrecarregados
serviços de saúde mental!